Mas o Brasil não era 'um país de todos'?
A guerra semiótica dos bonés e o exagero nas metáforas futebolísticas indicam o ponto a que chegamos na luta política.
A mais recente iniciativa da “nova comunicação” do governo foi o lançamento de bonés – e camisetas – com a inscrição “O Brasil é dos brasileiros”. Seria uma forma de confrontar a sabujice vira-lata dos bolsofascistas a exibirem orgulhosamente o boné que se tornou marca registrada da campanha de Trump. Contra o vermelho – vejam só que ironia – dos cada vez mais evidentemente nazistas que comandam o império decadente, mas por isso mesmo muito perigoso, o azul do céu da nossa pátria mãe gentil.
Uma amiga aplaudiu: estaríamos, afinal, embora com muito atraso, trazendo para o nosso campo “a identidade visual da extrema-direita”.
É verdade. Mas desde quando isso é motivo de comemoração?
O problema, naturalmente, não são os bonés, ou quaisquer outros adereços. O problema é o rebaixamento da guerra semiótica a esse nível.
Não assumimos apenas a identidade visual da extrema-direita, o que, de si, já seria grave. Assumimos também certas propostas, como a do ideal de “prosperidade” exaltado por Pablo Marçal – outro que não larga o seu boné –, que Boulos quis incorporar na sua campanha, com aquela conversa fiada de que prosperidade não são apenas os cifrões na conta bancária, quando ele sabe muito bem que não são outra coisa, e que essa prosperidade é inalcançável para a grande massa de gente pobre, permanentemente iludida por essa miragem, nem poderia ser esta a perspectiva de qualquer projeto emancipatório. Mas isso era no tempo em que projetos emancipatórios estavam na perspectiva da esquerda.
À parte isso, a frase escolhida para o boné azul adotado como símbolo do governo sugere uma patriotada estranha aos melhores princípios democráticos. Primeiro, por uma questão de preposição: não custa muito a exaltação do Brasil “dos brasileiros” escorregar para a defesa do Brasil “para os brasileiros”, típica do discurso fascista disseminado mundo afora. Mas porque dizer que o Brasil é dos brasileiros exclui as demais nacionalidades que vivem no país, legalmente ou não, muitas delas precariamente, marginalizadas e submetidas a condições desumanas de sobrevivência: bolivianos, paraguaios, venezuelanos, haitianos, congoleses, sírios, tanta gente que veio fugindo de guerras ou da miséria.
O Brasil não deveria ser dos brasileiros, o Brasil deveria ser “um país de todos”, tal como no slogan que foi a identidade visual de governos anteriores do PT. Sinal dos tempos, talvez, em que não estava no horizonte trazermos para o nosso campo os instrumentos da extrema-direita. Talvez porque a extrema-direita não estivesse no horizonte. Talvez porque considerássemos garantidas certas conquistas, e por isso não nos preparamos para enfrentá-la. Esse episódio dos bonés demonstra que continuamos sem rumo até agora.
Ao tratar dessa campanha do governo, Hugo Souza começou por ironizar o comportamento de seu idealizador, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e seu excesso de metáforas futebolísticas para tratar das mais variadas questões da política. Uma coisa forçada, constrangedoramente antinatural, na ânsia de falar “a linguagem do povão”. Sabe-se lá se isso decorre também de uma orientação da “nova comunicação” do governo. Se for, é uma tragédia. Para ficarmos no mesmo campo semântico – por pouco eu não disse “nas quatro linhas” –, a continuar nesse rumo, 2026 vai ser um tremendo 7 a 1.
Será que só nos resta orar para que a catástrofe da Copa de 2014 não se repita na política?
ótimo, Sylvia. além da ânsia deles, tem a ânsia de concordar de certa militância pra quem qualquer crítica é coisa de quinta-coluna. não aguento.
Foi tão boa a ideia do boné que no dia seguinte a direita atualizou a moda, levando ao plenário do Congresso algumas dezenas deles, bordadinhos com protesto contra o preço dos alimentos e clamando por Bolsonaro em 2026. Ontem minha filha (de 4 anos) aproveitou o banho pra me contar sobre uma coisa interessante que ela descobriu ter: dá pra pensar e imaginar coisas que podem acontecer. "Tem umas que são de verdade. Outras não." E tudo acontece bem ali onde colocamos boné, lá "dentro da cabeça", no "céleblo". Pessoal da comunicação está precisando usar melhor essa capacidade de se adiantar, pra além de tudo o mais que vc nota e eu assino embaixo.