Othon Bastos, a força da resistência e a leveza da Memória que dança e balança o mundo
Eu não posso mudar o mundo
mas eu balanço
mas eu balanço
mas eu balanço o mundoBalanceio, Juliana Linhares
“Meu nome é Othon Bastos. Sou um ator brasileiro. Tenho 91 anos de idade. E NÃO ME ENTREGO, NÃO!”
Quem poderia imaginar que, depois desse poderoso grito de resistência, que leva ator e público às lágrimas e ao aplauso entusiasmado da plateia que se ergue das poltronas, quando tudo indicava que o espetáculo estava terminado, ainda haveria uma breve sequência que provocaria mais aplausos e, agora, risos?
Pois há.
Mas vamos começar do começo, e alinhavar algumas coisas já ditas sobre esta peça, para depois avançar em outras interpretações não exploradas até aqui.
Quando recebeu aquele calhamaço de seiscentas páginas com anotações variadas e dispersas sobre arte, política, literatura, amor, fé e sobre a própria trajetória do ator, o dramaturgo e diretor Flávio Marinho resolveu – passado o susto inicial – dividir aquilo tudo em “montinhos” temáticos. Foi assim que costurou o espetáculo Não me entrego, não!, que estreou em junho no Teatro Vannucci, na Gávea, para ficar em cartaz por apenas dois meses. Diante do sucesso, a temporada foi prorrogada duas vezes e agora se estende até o fim de outubro.
A dificuldade na elaboração do texto é a que existe em toda biografia: como contar (e, mais ainda, encenar) uma vida?
O que vemos no palco é um mosaico em que, como escreveu Rodrigo Fonseca, Flávio “quebra com as convenções clássicas das peças biográficas e deixa seu protagonista falar de si com digressões à vontade”. A montagem, portanto, possivelmente se encaixa no conceito de “biografema”, de Barthes: não uma narrativa linear, mas a articulação de fragmentos, detalhes, que expõe um percurso aberto ao acaso, porém orientado pelo amor à arte e pelo princípio da resistência.
É assim que Othon Bastos conta a sua história. A começar pela declamação de um texto sobre a sina de todo artista, fadado a sangrar de paixão e dor. Corta para a impagável narrativa da derrota na disputa por ser representante de sua turma no colégio, ao declamar, sem a afetação grandiloquente própria da época, um clássico poema de Olavo Bilac, e ser levado pela professora a jurar que jamais, jamais se meteria a fazer nada de arte, porque ele não dava pra isso, seria um fracasso total (ah, dona Eliete, quanta ironia... jamais verias um ator como este!). Depois, a consulta com o pai de santo que o vislumbrava a andar de um lado para o outro falando pelos cotovelos, com um monte de gente prestando atenção, e ele, ainda adolescente, sem compreender que diabo de profissão seria aquela (e não diz, mas bem poderia ser a previsão de uma carreira de professor... não fosse o detalhe da atenção). A formação fundamental para o teatro, com Paschoal Carlos Magno. A experiência frustrada de atuar na Inglaterra. O retorno à Bahia e a construção do Teatro Vila Velha. As primeiras experiências no cinema, com O Pagador de promessas e Sol sobre a lama. O convite de Glauber Rocha para encarnar o personagem que o consagraria em Deus e o Diabo na Terra do Sol e a representação da extenuante viagem para o sertão, mimetizando na cadeira de lona, no centro do palco, o chacoalhar no banco do jipe sobre as costelas de vaca da estrada de terra, a convencer o diretor de que deveria abandonar os flashbacks e deixar que Corisco narrasse brechtianamente a sua trajetória. A experiência com Zé Celso Martinez Corrêa no Oficina. A fundação da própria companhia de teatro, com a mulher, Martha Overbeck, e a montagem de peças de Guarnieri que marcaram época durante a pior fase da ditadura, driblando a censura com metáforas. A homenagem à mulher, representada por uma rosa vermelha num vaso sobre a mesa e pelos olhos enormes colados no painel de fundo do palco, acima da foto-símbolo de Corisco com o punhal a dividir-lhe a face. A homenagem aos velhos companheiros mortos (presente, presente, presente...). A homenagem a Lorca, fulminando a plateia com os olhos e sapateando ritmadamente no palco, repetindo a reação do público espanhol à encenação de A Sapateira prodigiosa durante a ditadura franquista. O aprendizado da perseverança na observação do comportamento das formigas. A referência a poemas de Emily Dickinson e Mário Quintana, a declarações de atores famosos, o entusiasmo ao falar da própria profissão, e o grito de resistência ao final. Que, como em certos filmes que continuam durante os créditos, não é exatamente o final.
Os textos publicados até agora sobre a peça ressaltam esse grito de resistência e o desempenho do ator, com impressionante vitalidade aos 91 anos. Mas passam ao largo de um detalhe fundamental – o do artista que representa a si mesmo – e distorcem, ou compreendem mal, um recurso estruturante da peça: a presença da Memória, vista como mero “ponto” retirado de seu esconderijo para se expor no palco, quando é, efetivamente, um personagem. E nem passam perto do giro que ocorre no fim.
De fato, Othon salta de um personagem a outro nas peças em que atuou, de Um grito parado no ar ao Jardim das cerejeiras, mas representa sobretudo a si mesmo. Como funciona isso?
“Ator é aquele que fica horas e horas à espera de si mesmo”, diz ele a certa altura, citando o britânico Paul Scofield. Mas isso diz respeito ao que cada personagem revela do próprio ator, ou como o pode afetar. Como disse Othon numa entrevista antes da estreia, e diz de outro modo e com outra ênfase durante a peça: “Você tem um monte de personagens dentro de você, não é? Você carrega esses personagens com você. Você nunca sabe o que vai sair, o que vai entrar, mas estão todos dentro de você”.
Quantos desses estarão contando essa história?
São questões sobre as quais a peça nos estimula a refletir. Da mesma forma que podemos refletir quando o ator, em outras entrevistas, reitera seu compromisso em dizer a verdade. Trata-se da verdade da peça, da verdade do personagem que se representa. Porém é possível pensar que o ator, como o poeta, é um fingidor, mas não engana porque incorpora esse personagem e então transmite a dor que deveras sente. Ainda mais quando representa a si próprio, por mais que carregue tantos personagens dentro de si.
Finalmente, a Memória. Pode ter sido inicialmente pensada como um ponto de apoio, e de fato eventualmente desempenha essa função, mas evidentemente é muito mais que isso: é um elemento estruturante da peça, um personagem que dialoga com o protagonista, que o contesta e é contestado por ele, uma figura tipicamente brechtiana que impõe o distanciamento reflexivo em vários momentos do espetáculo.
Antes de a peça começar, a atriz (e diretora assistente) Juliana Medella caminha até a beira do palco, concentrada em exercícios corporais, como se fizesse um aquecimento. Celular pendurado ao pescoço, faz o gesto de desligá-lo e encara a plateia, que dá uma risadinha envergonhada e cúmplice e vai silenciando. Logo depois, será apresentada ao público como esse personagem que intervirá em diversas ocasiões.
Aproximando-se do final, Othon declama trechos da letra de Um grito parado no ar e emenda com a afirmação de sua identidade e seu brado de resistência. A poderosa carga emocional faz o público irromper em aplausos, mas é quebrada logo em seguida, quando a Memória faz uma reverência ao protagonista, põe-lhe o chapéu na cabeça e ambos dançam breve e suavemente, ao som de um arranjo também suave da canção-tema daquela peça. Firmeza e leveza ao mesmo tempo nesse momento de distensão e na esperança que deixa no ar: sabemos que há um céu sobre essa chuva. Por isso perseveramos, não nos entregamos, não.
Pode ser que não possamos mudar o mundo, mas pelo menos o balançamos. Diante das sucessivas tempestades que enfrentamos nos últimos tempos, não é pouca coisa, não.
Texto brilhante
Ótimo texto sobre esse espetáculo indescritível, de tanta emoção, beleza, graça e "verdade".
Fiquei curtindo seu texto e com vontade de assistir de novo, Sylvia. E a esperança que você desvenda no final foi o que eu senti, acabo de perceber. Obrigada por traduzir tão bem.