'Uma coisa é um país, outra o aviltamento'
Aprovação da PEC da Bandidagem e da urgência na votação da anistia aos golpistas nos faz relembrar o poema evocado por Carmen Lúcia e impõe a pergunta: estaremos à altura do nosso tempo histórico?
Mentem no passado. E no presente passam a mentira a limpo. E no futuro mentem novamente.
...
Mentem desde Cabral, em calmaria, viajando pelo avesso, iludindo a corrente em curso, transformando a história do país num acidente de percurso.
Affonso Romano de Sant’Anna, A implosão da mentira.
No início de seu voto, o terceiro daquele julgamento que definiria a condenação de Bolsonaro e demais acusados por articular a tentativa de golpe de Estado, a ministra Carmen Lúcia citou versos do poema “Que país é este?”, de Affonso Romano de Sant’Anna. Precisamente estes:
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
Este é o país do descontínuo,
onde nada congemina.
Se tivesse continuado, teria dito:
Nada nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina
Pois então: a decisão histórica – verdadeiramente histórica, das poucas vezes em que este adjetivo tão banalizado pode ser empregado em seu sentido mais rigoroso – de condenar um ex-presidente da República e seus comparsas fardados de alto coturno por tentar destruir o Estado democrático de direito e permanecer ilegalmente no poder foi intensamente comemorada nas ruas, como deveria ser. Mas logo a mão leve do político se abateu pesadamente, como a dizer que não devemos ter esperança nenhuma. Foram dois golpes sucessivos: a aprovação do projeto de emenda constitucional que praticamente inviabiliza o julgamento de parlamentares acusados de crimes – por isso chamado de PEC da Bandidagem – e, na sequência, do regime de urgência na apreciação do projeto de lei que anistia os acusados de golpe, que abrange todos os que participaram dessa tentativa desde antes do ataque da multidão enfurecida à Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, e que pretende deixar Bolsonaro e seus parceiros militares livres para novas investidas.
A PEC da Bandidagem beneficia diretamente todos os envolvidos – e alguns já investigados, mas cuja investigação seria suspensa a partir da aprovação da lei – no tal “orçamento secreto”. É, portanto, uma excrescência que jamais poderia ter sido aceita por quem quer que preserve um mínimo de dignidade. No entanto, foi aprovada com mais votos do que o mínimo necessário para promover uma alteração constitucional, e a toque de caixa, sem o debate indispensável para uma decisão de tamanha importância. Doze deputados do PT, ou um quinto da representação do partido na Câmara, participaram dessa aprovação. O argumento? O acordo para que a urgência no PL da Anistia fosse rejeitada.
Em suma: uma PEC aviltante dos mais elementares princípios republicanos seria moeda de troca para preservar outros princípios republicanos elementares.
Acharam mesmo que era possível fazer acordo com os gângsteres que recentemente tomaram de assalto o Congresso, naquela segunda tentativa de golpe sobre a qual se puseram os habituais panos quentes? Acharam mesmo que esse acordo seria cumprido?
Serão inocentes os companheiros do PT que votaram a favor dessa indecência? Ou apenas sórdidos, vis, cínicos oportunistas?
(“Este é um país de cínicos em geral”, diz a certa altura o poema).
“Tem de expulsar esses traidores do PT!”, berram os mais indignados.
Não, queridos: teria de expulsar se o partido tivesse fechado questão na rejeição da emenda. Mas... liberou a bancada para votar como quisesse. Podemos falar em traição, mas não exatamente desses 12.
“Esses deputados não representam a sociedade!”, berram outros – e aqui certamente não falam apenas dos petistas, nem dos demais de partidos ditos progressistas, mas de todos os que votaram a favor de si próprios.
De novo: não, queridos. Representam, sim. Todos esses foram eleitos, como vêm sendo, e não é de hoje.
Foram quase 58 milhões que deram a vitória a Bolsonaro em 2018. Foram mais de 58 milhões que repetiram o voto em 2022, apesar de tudo, sobretudo apesar da pandemia, e por muito pouco não o reelegeram.
Este é o país.
(“Um dia, quando for seguro, quando não houver consequências pessoais por chamar as coisas pelos nomes, quando for demasiado tarde para responsabilizar seja quem for, sempre teremos sido todos contra isto”, escreveu Omar El Akkad em outubro de 2023, num tuite semanas após a intensificação do bombardeio a Gaza. Um dia sempre teremos sido todos contra isto é o título de seu livro, a ser lançado em outubro, sobre esse genocídio, contra o qual até agora todos os protestos têm sido impotentes. Mas é uma carapuça que serve a todos nós, é o que nos obriga a nos confrontar no espelho, é o que nos empurra novamente a enfrentar a distinção entre ratos e homens).
Hugo Souza expôs neste Come Ananás a justificativa do presidente do PT, Edinho Silva, numa entrevista à Globonews na tarde desta quarta-feira, 17, para o estranho voto de seus companheiros de partido. Relevou o lapso do dirigente ao falar da “Constituição de 89”, que todos sabemos ter sido aprovada em 88, depois de intensa batalha na esteira da turbulência que marcava a transição da ditadura para a democracia. Aquela Constituição cuja edição Ulysses Guimarães ergueu com as duas mãos, como um troféu, ao anunciá-la num discurso também verdadeiramente histórico, do qual ressoa até hoje a frase: “Temos ódio da ditadura! Ódio e nojo!”
Pois temos: da ditadura e de todos os que dão margem a voltarmos a ela.
Onde foi parar o vigor daquele tempo? Como foi possível nos amesquinharmos tanto? E como não percebemos o rumo que as coisas estão tomando, e deixamos a condução do nosso futuro (ou será destino?) a esses “mestres, sábios, infalíveis da política”?
Se é verdade o que se noticiou a respeito dessa tentativa de acordo com o que deveria ser inegociável – a aprovação da PEC da Bandidagem em troca de jogar para as calendas o PL da Anistia, para não confrontar o STF, que em contrapartida apenas arreganharia os dentes mas não agiria efetivamente contra os ladrões do orçamento –, se isso é verdade, a esperança é de que, agora que o acordo não foi cumprido, o STF mantenha a firmeza que tem demonstrado e rejeite, por evidentemente inconstitucional, a provável aprovação da anistia. Ainda que Pilatos, perdão, Luís Roberto Barroso, tenha acenado com um lavar de mãos há cerca de um mês, quando os réus ainda não haviam sido julgados. Vale a pena recordar:
“Do ponto de vista jurídico, anistia antes de julgamento é uma impossibilidade, não existe. Não houve julgamento e nem houve condenação. A manifestação de colegas do Supremo sobre isso é por se tratar de uma questão jurídica, não se anistia sem julgar. Depois do julgamento, passa a ser uma questão política. Questões políticas vão ser definidas pelo Congresso. Não estou dizendo que acho bom, nem que acho ruim, nem que deve fazer e nem que não deve”
(Anistia antes de julgamento é uma impossibilidade, sim, mas foi perfeitamente possível em 1979, com a lei imposta pela ditadura, que, também a título de “pacificar o país”, como se diz hoje, livrou a cara de torturadores e dos generais responsáveis pela repressão. Tanto tempo depois, o STF está para rever, finalmente, essa interpretação da lei, a partir da reavaliação de casos como o de Rubens Paiva. Poderemos ter essa esperança?)
Questões políticas estão sendo definidas pelo Congresso, do jeito que estamos vendo.
Desde que este Congresso deixou claro que impediria o governo de governar, impunha-se uma campanha ampla, vigorosa, permanente, para escancarar os métodos da corrupção e expor os beneficiários do “orçamento secreto”. Seria uma tentativa de sair das cordas, mudar a famosa correlação de forças, sempre tão desfavorável.
Mas, não. Devemos a todo custo evitar o confronto. Perdoai-nos, Pai, os “infalíveis da política” sabem o que fazem.
Nunca antes na história deste país um ex-presidente e seus comparsas militares de alta patente foram condenados por tentativa de golpe de Estado. Teremos lideranças políticas à altura dessa decisão? Ou será nossa história mesmo apenas um acidente de percurso?